Textos

Marcus de Lontra Costa - O Fio e a Navalha
01/03/2019

``O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente``

Fernando Pessoa in Autopsicografia

Toda a obra de Nazareth Pacheco constrói pontes sobre abismos; estradas que percorrem territórios distintos, várias paisagens. No mundo de verdades líquidas, o corpo se espalha, espraia, se orienta através dos fluxos e dos ritmos; esse sujeito estilhaçado reflete no espelho fragmentos de uma imagem que não mais existe. Ele sobrevive pelas frestas, pelos vazios, pelos sentidos que o comunicam com os objetos do mundo que o cerca. Quais são os seus limites, o que define esse corpo e esse não-corpo, o que seria hoje a fronteira entre o Ser e o outro? Olho para os objetos criados por Nazareth e identifico neles fragmentos poéticos de uma ação artística que revela verdades a partir da aproximação de ideias conflitantes, de sensações perturbadoras que despertam a paixão e o ódio, a vida e a morte, o horror e a beleza, a cinza e a relíquia. Tudo aqui conspira para a exacerbação das sensações emocionais e por mais que tentemos estabelecer limites, essas pequenas pérolas parecem transbordar a linguagem da certeza, as marcas da correção e a domesticação da fonte criativa. Assim se funda o espírito e o corpo da instância artística.

Em meio à bruma das sensações e encantamentos que a obra da artista provoca, como identificar situações objetivas que alicerçam esse universo onírico e misterioso sem reduzir a sua potência emotiva ou domesticar a sua ousadia? Há, de início, uma deliberada ação autoral: a influência pós-minimalista presente na formação de grande parte dos artistas paulistas de sua geração dá a Nazareth Pacheco a clareza conceitual e as ferramentas necessárias para a elaboração de uma sintaxe objetiva e universal. Por outro lado, alguns problemas de saúde congênitos fizeram com que a artista desde cedo passasse a conviver entre médicos e hospitais, trazendo assim a especificidade de suas questões íntimas e pessoais para o seu universo criativo. É exatamente essa polaridade entre a objetividade formal e alguns aspectos dolorosos e sensíveis de sua trajetória de vida que empresta aos objetos de Nazareth uma poética povoada de pequenas belezas e grandes mistérios, de sustos e encantamentos, no qual o antagonismo entre a dor e a alegria é perpassado por uma sutil e cortante ironia.

A perfeita artesania da artista, seus bordados, suas rendas, suas costuras, aproximam a delicadeza de sua elaboração formal com a virulência da imagem e do conceito da obra. Trata-se, na precisa definição de Tadeu Chiarelli, de ``objetos dependentes``, que exigem a relação com a paisagem que os cerca, que clamam pela presença da alteridade como definição de seu princípio fundamental. Tudo aqui existe na dependência do outro, na precisa equação entre as partes e o todo. E suas verdades são várias, misteriosas e sutis, algumas vezes até conflitantes. Assim, objetos de adorno são também ferramentas de violência e agressividade. A aproximação com o design cria curiosas ironias com a inadequação entre forma e função, acentuando alguns aspectos fetichistas do objeto artístico dentro das tradições elementares de algumas vanguardas negativas modernistas, entre as quais destacadamente o surrealismo e o dadaísmo. Tudo aqui conspira para a construção de uma relação cada vez mais integrada entre os agentes de criação, fruição e elaboração de conceitos determinantes da instância artística. Esse corpo complexo recusa limites; ele se constrói através de uma linguagem articulada que surge não somente como resultado de um pensamento, mas também, e principalmente no momento do encontro, na fisicalidade da relação estabelecida entre um e outro, entre você e ele, entre nós, entre todos. ``A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra a outra. É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos nas pontas de minhas palavras``. (1)

O corpo, em nossa época, é a extensão de processos construídos com o concurso de várias ciências, vários saberes. Ele é editado, transformado, ele é fruto de interferências tecnológicas e resultam num sujeito híbrido, cyborgs que povoam nosso organismo. Em Nazareth Pacheco esse ``corpo é testemunha do bem que ele me faz``.(2) Tudo aqui conspira, inspira, em procedimentos e práticas mundanas que dão ao ser a complexidade existencial de um corpo fluido e sem fronteiras. ``Por que nossos corpos deveriam terminar na pele ou incluir, na melhor das hipóteses, outros seres encapsulados pela pele?`` (3) Olho para esse sangue, "sangue de meu sangue", trapo e farrapo que alimenta a vida e sua memória; ao abandonar a sua morada original, o organismo, ele é corpo expandido e adquire a generosidade coletiva que Nazareth mais uma vez subverte, dando-lhe a dimensão poética da relíquia e da beleza. Ao longo dessas últimas décadas, a artista desenvolve, de maneira rara em nosso cenário artístico, uma trajetória corajosa, expondo a si mesma, coragem feminista do desnudar-se, potência criativa que une aspectos pessoais com relações e situações de identificação coletiva. Diante da cada objeto criado por Nazareth emerge a força da verdade, a contundência da vida sem perder em nenhum momento a ironia e mesmo, a ternura, ferramentas essenciais para dialogar com o mundo.

Nos últimos anos fatos de âmbito familiar e pessoal fizeram que Nazareth Pacheco mais uma vez retomasse a sua rotina inicial de convívio com hospitais, médicos e ferramentas terapêuticas. Com o falecimento de seus pais, a artista enfrentou o doloroso processo de conviver e selecionar objetos sem dono, corpos sem espírito. Assim, além de objetos de uso pessoal, Nazareth reuniu não só as camisolas do enxoval de sua mãe como também radiografias, exames médicos e alguns instrumentos do consultório de seu pai, neurologista. Há, nesse procedimento de luto, a tentativa indisfarçável de animar, de mover e dar vida a algo que se encontra apenas no terreno da memória. Ao mesmo tempo ela própria submeteu-se a uma série de procedimentos de caráter regenerativo, o que a forçou, mais uma vez, a conviver com consultas e cirurgias. Nesse processo, a artista decidiu fazer uma série de cirurgias estéticas e registrou imagens de seu rosto em fotografias de forte impacto visual. Esse conjunto de obras recentes pode ser compreendido como uma série na qual o corpo se transforma, onde a forma se transfigura e onde situações invasivas compõem um universo provocante e misterioso que dialoga com o supérfluo, com a necessidade, com a beleza e a verdade. Radiografias, tensores, ferramentas fisioterápicas, medicamentos, vídeos e fotografias formam um conjunto impactante no qual o corpo é compreendido em sua função dialética e em seus limites que transcendem a fronteira da epiderme. No mundo conturbado das imagens sem destino, poucos artistas enfrentam, com a valentia e a inteligência de Nazareth Pacheco, os dilemas, as descobertas e as inquietudes de reconstrução do sujeito em um terreno líquido e no qual o corpo recusa a solidez de suas formas, de seus conceitos e de suas definições.

São Paulo. Março. 2019.
Marcus de Lontra Costa

(1) BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, p. 64.
(2) Trecho da canção “O meu Amor” de Chico Buarque de Hollanda.
(3) HARAWAY, Donna. A Manifesto for Cyborgs, in BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. New York: Routledge, 1993, p.1.

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