Textos

Giancarlo Hannud - Gota a gota
01/06/2015

A produção de Nazareth Pacheco vem se engajando, ao longo das últimas três décadas, com o jogo de vai e vem existente entre sedução e repulsa, controle e aleatoriedade, líquido e sólido. Num primeiro momento – mais precisamente na década de 1990 – a artista tratou do corpo, em particular da história da construção de seu próprio corpo e da memória que ele carrega, num processo de catarse e transfiguração da dor. Nesse sentido ela acompanhou a discussão empreendida por tantos outros artistas de sua geração, alguns afetados pela crise da aids, outros pela problemática do espaço ocupado pelo corpo e sua inserção no mundo contemporâneo, e ainda outros pelo legado do feminismo-, os quais plasmaram uma cartografia das tensões, tormentos e prazeres inerentes a essa soma. No entanto, recentemente o material sensível que dá origem a seus trabalhos devorou, por assim dizer, a própria cauda, partindo do universo do corpo e seus processos para uma discussão dos materiais e suas características. Dessa forma ela agora coloca em pauta as particularidades de uma matéria inanimada, porém pulsante, fixando no tempo o seu gesto sobre o material, que obedece às regras do universo no qual está inserido. Se anteriormente o efeito geral produzido pelo seu trabalho era o de ``resquícios de uma história petrificada``, como escreveu Ivo Mesquita, ele agora é o de uma petrificação instantânea da ação da artista sobre o material que dá origem às suas esculturas e instalações. Talvez fosse mais acertado falar de um material que constrói a obra por intermédio da artista, pois no seu atual processo de criação o material vem antes da forma, é ele quem define a produção da obra. Nesse sentido, pode ser proveitosa para a compreensão de seu trabalho recente uma aproximação com a obra de Lynda Benglis e suas pinturas de cera, esculturas de látex derramado e seu imaginário orgânico produzido a partir de uma ótica feminista bastante combativa.

A presente instalação é constituída por aproximadamente 2000 gotas em bronze de variados tamanhos distribuídas por toda a extensão do elevador principal da Pinacoteca. Vale lembrar que para a execução dessas gotas a artista abre mão, até certo ponto, do controle sobre o material, um dos tradicionais pré-requisitos da produção artística, afinal o caminho que o bronze percorrerá no curto trajeto entre líquido e sólido não é cognoscível de antemão. Num processo de significação quase que alquímico, forças externas a ação da artista acabam por atuar sobre o material determinando assim a forma sólida, e final, que ele assumirá. Essas formas globulares, produzidas por um processo de fundição de moldes de gesso, empedram o momento fugitivo da solidificação do bronze liquido, e nos fornecem com uma linha de continuidade que perpassa a trajetória da artista, desde as giletes e agulhas de seus colares e vestidos, passando pelas gotas de acrílico vermelho, as gotas de sangue sobre papel, até o mercúrio e a prata de seus trabalhos mais recentes. Mesmo abdicando do controle sobre a forma final dos elementos que constituem a instalação, a artista não se exila totalmente da obra, pois a ação de organização, edição e estruturação desses elementos, num exercício de notável formalismo notável, é o momento no qual a reconciliação entre o controle e o descontrole, entre o caos e a harmonia, se opera por meio da ação organizadora da artista

É interessante pensarmos que a contaminação proposta por essa instalação acaba por discutir o próprio local da arte no museu, pois ao infectar, como um vírus, um espaço de transição e suspensão, Pacheco sugere um roteiro outro pelo museu – sentimental, formal e biográfico – assim como pelo prédio no qual a instituição se insere, trazendo memórias de suas múltiplas funções ao longo dos anos. Do mesmo modo, ela exemplifica o deslocamento de seu próprio corpo pelo espaço, organizando, desorganizando e reorganizado as gotas que contaminam o elevador, chamando atenção ao caráter essencialmente infeccioso que é o olhar obras de arte dentro de um museu.

Texto orginalmente publicado no folder da exposição Gota a gota, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2015

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