Ivo Mesquita - O Corpo Em Construção
01/06/1994
Nosso corpo nos informa e reforça a ideia de ser e existir. Ele é o lugar derradeiro da dor e do prazer, e ao mesmo tempo o frágil refúgio e o ponto de contato com o mundo. O corpo funda a identidade do ser. Isso não é novo. Através da história da arte ocidental temos visto a representação do corpo humano usada como metáfora, uma imagem simbólica associada às noções de ordem das coisas, de aparência e similaridades. Embora um corpo visível e idealizado pelos artistas, sua carnalidade, entretanto, foi dissimulada pelos discursos predominantes da moral, da religião ou da estética, que determinavam a visualidade, a linguagem e a cultura. Mais recentemente, certos artistas colocaram o corpo como tema central do trabalho, instaurando um debate político para além da especificidade da arte, e inscrevendo novos discursos que apontam para algumas das questões mais urgentes da contemporaneidade: gênero, minorias, aborto, violência, doença e morte. O corpo tornou-se a última fronteira e um campo de batalha cultural. Não é mais apenas o objeto de representação ou de investimento sexual sublimado, mas o território de múltiplas tensões, apontando diversas direções em reação a qualquer colonização do corpo.
Nazareth Pacheco tem criado seu trabalho recente a partir da história do seu próprio corpo. Se antes suas esculturas e objetos também podiam ser lidos por esta perspectiva se tomados como metáforas, embora eles se constituíssem a partir de pressupostos do pós-minimalismo e da arte povera como outros artistas de sua geração no Brasil, agora a referência é direta a esta história. Nascida com problemas de formação congênitos, a artista passou por 16 cirurgias plásticas reparadoras e modeladoras para ter sua aparência atual. Os testemunhos deste longo processo – fotos, radiografias, pinos metálicos, receitas, relatórios médicos, seringas, formas e moldes – foram colecionados como um diário, memória desta experiência. Eles são o registro que reconstituem a história da construção do corpo da artista.
A partir da sua experiência pessoal, Nazareth montou urna série de trabalhos acondicionando, em caixas de madeira forradas de chumbo e fechadas por um vidro, todos estes fragmentos de vivências do próprio corpo em transformação. O esforço é similar ao da investigação da genealogia de alguém, inventariando as marcas dos ancestrais que fazem dele ou dela a soma de seus predecessores. Mas, no caso de Nazareth, estes objetos exalam o sentido de uma indagação obstinada na combinação de elementos que se recusam à beleza estética e formal. Os trabalhos resultam em algo enxuto, uma sequência de objetos que refletem a visão dissecante de resíduos, e que informam sobre a determinação do artista de arriscar e experimentar outra forma.
Eles podem ser divididos em dois grupos: os que se referem às cirurgias e terapias de modelação da estrutura do corpo (ossos, cartilagens, sentidos); e os que se referem à aparência plástica do corpo (dermatologia, cosmética, cirurgia plástica). O efeito geral destes trabalhos é o de resíduos de uma história petrificada, mas sem ser mórbida ou inspirar piedade. O espectador é deixado a contemplar estes resquícios mudos, irremediavelmente alienados do sofrimento evidente que artista experimentou uma vez, confrontando-se, no entanto, com anseios contraditórios entre ficar olhando hipnotizado ou voltar-se imediatamente, porque é incapaz de escapar da sensação desconfortável que demarca a pequena distância do destino dele do da artista. Estas caixas falam ao medo recalcado em todos nós das transformações físicas, da mortalidade, do sofrimento e, ao mesmo tempo, do desejo intelectual de conhecer intimamente a dor agonizante a qual a carne é suscetível.
Entretanto, nas caixas de Nazareth há certa calma, um agenciamento psíquico sem ansiedade, algo que passa quase indiferente pelo sofrimento experimentado pela artista. Valendo-se de sua condição singular, ela se afasta da retórica de seus contemporâneos para instaurar a diferença de seu trabalho: não ser metafórico. A ``fisicalidade`` destes fragmentos ordenados não informam nada além da sua história pessoal, assim como não transportam coisa alguma além da materialidade de seu próprio corpo, ainda que mostrem detalhes ou referências ao processo de modelação do corpo da artista organizados e expostos numa ostentação inquietante. Elas se constituem a partir de uma manipulação não enquanto forma capaz de conter um sentido, mas pela apropriação que a artista faz de si mesma. Deste modo Nazareth trabalha sobre a questão do vínculo entre o artista e o mundo, e exprime sua própria dificuldade de dar conta da realidade que explora. As fotos, os relatórios, os moldes, os instrumentos que invadem o olhar aparecem como fendas no desejo de ver, onde ator e espectador, vítima e voyeur se confundem. A realidade do corpo que esvazia a imagem exige o corpo do espectador para alimentar o olhar. É para reencontrar a profundidade desta experiência, a verdade deste instante, que ela confronta o observador com estes fragmentos do real, implicando-os em seu desejo de trazer uma vez mais seu corpo à visão.
Ivo Mesquita é curador e escritor independente. Vive e trabalha em São Paulo.
Texto originalmente publicado como ``Nazareth Pacheco: El cuerpo en construcción / The Body under Construction``, em Poliester, vol. 3, n. 9, verano 1994, p. 46-49. Versão atual revista pelo autor em 2019.