Textos

Lucília Maria Sousa Romão - O discurso do doc-vídeo Gilete azul na esfera do cortante e da criação
01/01/2007

1- Efeitos de corte e(m) uma possível introdução

“Todo corpo que tem um deserto/ tem um olho de água por perto.” - Marisa Monte


Nesse trabalho, reflito sobre efeitos de corte estabelecendo, inicialmente, relações de sentido sobre o cortar, depois sobre o discurso na perspectiva da Análise do Discurso de filiação francesa para, posteriormente, observar re-cortes do vídeo-doc de Miriam Chnaiderman, intitulado Gilete Azul. A análise de um corpus constituído por trechos do depoimento de Nazareth Pacheco e a tentativa de, longe das obras plásticas da artista, observar, na materialidade lingüística, a emergência do sujeito e dos efeitos de corte fazem parte dessa empreitada, cuja construção é uma dentre várias, mas bem poderia ser outra se o (re)corte fosse dado em outro lugar e se a linguagem fosse (re)talhada de outro modo.

Considerando isso, parto do corte como movimento, construção e arquitetura em que há sempre algo deixado de fora, elaboração em que o efeito de seccionar implica tanto abertura, quanto fechamento em si mesmo. Ou seja, a um só tempo, cortar distancia partes que anteriormente se supunham conjugadas ou combinadas e, ao mesmo tempo, abre uma fenda que tende a promover a aproximação com outras bordas. Nesse duplo movimento, o sujeito sublinha suas perdas e delas faz, como pode, a ancoragem em algo diferente, muitas vezes inscrito em uma outra ordem de ganho. Sinalizo, então, nos recortes da materialidade lingüística, sentidos que condensam efeitos de contradição.

O corte cirúrgico a separar carnes e a abrir caminho para uma entrada mais funda, aproximando-se de um órgão, por exemplo, ao desligar tecidos, a tesoura abre rupturas que tendem a instalar hemorragia, sangramentos pedintes de fluxo, perda de uma ordem orgânica que se estabelecia em funcionamento, organizada e fluente do modo como estava. Nessa direção, o corte desestabiliza tudo isso (até mesmo a desordem) e simultaneamente permite que o instrumento cirúrgico, a mão do médico e o olhar tomem posse de uma fundura do/no corpo, que sem o corte, ficaria sempre no eixo dos subterrâneos inacessíveis. Ainda que hoje máquinas de diagnosticar e cirurgiar prometam apenas um furo pequeno, ele é o bastante para que tal processo se dê por inteiro.

O corte-cicatriz é outro exemplo (muitas vezes derivante do corte cirúrgico) que mobilizo nesse início de trajeto. Aquilo que, na pele, é o crivo do tecido estrangulado, arrancado ou arranhado passa a simbolizar algo que será um sinal de presença, uma marca especular, um ícone de propriedade do sujeito. Difícil olhar para uma cicatriz e não atualizar, sob o efeito da memória, a cena do corte ainda que elas (cena e memória) possam ganhar ou sofrer deslocamentos em diferentes momentos e que se possa dizer, do mesmo corte, cada vez de um enunciado outro. O corte, na direção do que estou marcando, é perda para, depois, dar-se como presença, como algo anexado para sempre na carne, chancelado sem a perspectiva do apagamento, pois, mesmo escondido, instala significação.

O corte na sessão analítica me parece instalar a mesma instância de contradi(c)ção dita até aqui. A interrupção é dada pelo que apareceu na cadeia significante e que seria capaz de alardear um achado na bateia de garimpo da fala. O sujeito falante/ndo apenas percebe o efeito cortante quando se interroga sobre o seu próprio dito e volta a alguma parte do seu dizer, retoma sua palavra, recostura-se no seu próprio discurso. Cortar aqui implica, no aspecto mais prático, levantar-se e sair, distanciar-se do lugar onde se supunha acolhimento, mas seria pouco se fosse só isso. Sinaliza também o peso (ou a leveza) de algo que grita e reclama significação e que será suturado aos poucos em tantas outras sessões, repetições e cortes novos a abrirem outras pausas; cortes estes que só o sujeito, no monastério da sua própria solidão, poderá ruminar. O quanto de tecidos vivos é aberto nesse momento não se pode mensurar, mas a linguagem se incumbe de fazer o seu trabalho de decantar algumas cenas, acomodar outras, elaborar imagens, enfim, propiciar uma entrada mais adentro (ou mais afora), mas própria da substância que move o sujeito.

Estes três exemplos, ditos nessa ordem, enredam uma travessia do mais visível ao mais sutil e sinalizam diferentes dimensões de corte. Os primeiros em uma cartografia na qual é permitido olhar, mensurar, estabelecer cálculos e desenhar planos de intervenção no observatório do corpo; o último em um território de diferente ordem, em que pese a linguagem e o sujeito discursivo, não passíveis de regularidade, avessos a categorias e escapantes de regras rígidas; em que a opacidade funda-se suprema, juntamente com o equívoco, o não-controle, a ambigüidade, os não-acabamentos; finalmente, em que a possibilidade de criação se faz presente no corte e talvez por causa dele, nos movimentos de emergência do sujeito e do sentido, isto é, do discurso.

2. O corte no discurso

“Aprendi com a primavera a deixar-me cortar/ e a voltar sempre inteira.” - Cecília Meireles


O ato de tomar a palavra sempre implica movimento(s) de cortes. Ao dizer de um jeito, sempre são deixados de lado outros modos de dizer, ao escolher certas palavras, outras tantas ficam apagadas pelo sujeito no momento em que constrói seu discurso. Algumas noções-chave da teoria fundada por Pêcheux (1969) merecem destaque: a primeira delas diz respeito ao fato de que é impossível ao sujeito dizer tudo, enunciar completamente sobre algo e conter todos os sentidos possíveis em sua voz, posto que ele sempre fala de uma posição, o que já implica um corte a priori. Porque não se pode ocupar todas as lugares discursivos ao mesmo tempo, porque a palavra serve mais para desdizer do que para clarear, porque o controle dos sentidos é vetado ao sujeito pela ideologia, ele sempre do ponto em que a ideologia o interpela, tomando como sua apenas uma parte, assentando-se e construindo-se como efeito de linguagem a partir de uma circunstância sócio-histórica.

Assim, o sujeito estrutura o seu dizer apoiado em duas ilusões chamadas de esquecimentos (Pêcheux, op.cit.), não porque digam respeito ao campo das recordações ou ao plano cognitivo marcado pelo gesto de não se lembrar de algo, mas porque são mecanismos necessários para a própria constituição do sujeito. O chamado esquecimento número 1 está relacionado à condição de o sujeito ter certeza de que suas palavras irrompem nele mesmo, brotando no exato momento em que são ditas, o que implica apagar a rede de filiações de sentidos já postos em discurso em outros contextos. Assim, ser a suposta fonte empodera imaginariamente o sujeito na direção de construir o fio de seu discurso como se a palavra fosse algo só dele, sua propriedade particular, o fruto de sua criação, ou seja, imanência que surge em/de seu interior. Segundo Pêcheux (op.cit.: 173), “(...) o esquecimento nº. 1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que (...) esse exterior determina a formação discursiva em questão.”. Se estamos no campo da ilusão, é necessário que ela seja desconstruída, pois, de acordo com a teoria discursiva, o sujeito sempre recorta palavras que não são suas, ou melhor, sempre articula zonas do já-lá (PÊCHEUX, 1999) tomando-as emprestadas de outros lugares e outros sujeitos, costurando, em sua voz, retalhos do interdiscurso (PÊCHEUX, 1969).

No esquecimento número 2, o sujeito tem certeza de que seu dizer é transparente a ponto de não criar ambigüidades, equívocos, polissemia e, assim, supõe a existência de há uma relação direta entre o que ele pensa e o que ele diz, como se entre o pensamento e a linguagem não houvesse outra barreira a não ser evidências de claridão. Não caberia outro efeito a não ser o colamento do sujeito em uma outra forma de poder, qual seja, a de que, sobre o objeto, só há um dizer possível, o seu; isso cria a ilusão de que apenas um sentido é evidente e óbvio, produzindo o apagamento de outras maneiras de formular e inferir sentidos. Sobre tal ilusão, é necessário anotar que esse é justamente o trabalho da ideologia, mecanismo que faz parecer natural um sentido a partir da posição que o sujeito ocupa, escamoteando outros que não podem ou não devem circular. Os indesejáveis ficam à margem (silenciados) para que um sentido apenas se sobressaia como sinal de verdade. “Concordamos chamar esquecimento nº. 2 ao ‘esquecimento’ pelo qual todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase - um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro (...)” (PÊCHEUX, op. cit: 173)

Essa seleção é derivada da ideologia, que promove cortes no modo como interpela, assalta e captura o sujeito, sinalizando uma região de sentidos como aceita na mesma medida em que exclui outras formas de dizer. A questão ideológica comparece neste artigo em relação com o que já foi dito anteriormente sobre o corte, pois ela é o motor do processo de produção histórica dos sentidos e sempre faz o sujeito re-cortar em suas palavras o que pode e deve ser dito, definindo um arranjo que implica corte. "Os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos e isto não está nas essências das palavras mas na discursividade, isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos, materializando-se nele." (ORLANDI , 2005: 43)

Se o sujeito enuncia o que a ideologia lhe permite, é preciso considerar que ele não pode produzir qualquer sentido ou todo sentido, aquele marcado pela posição que, no discurso, ele toma como sua e isso reclama considerar as condições de produção. Descritas como dados conjunturais e históricos da luta pelo poder e também como marcas situacionais ditadas pelo momento da enunciação, são estas condições que inferem na produção e circulação dos efeitos de sentido, o que as coloca como constitutiva da própria linguagem. Se antes a exterioridade era algo que beirava à palavra, sustentando um entorno, um de-fora, uma borda de isolamento entre o contexto e o texto, na Análise do Discurso, ela é parte da linguagem, tornando fusionadas as ordens da língua e da história. “As condições de produção incluem pois os sujeitos e a situação. A situação, por sua vez, pode ser pensada em seu sentido estrito e em sentido lato. Em sentido estrito ela compreende as circunstâncias da enunciação, o aqui e o agora do dizer, o contexto imediato. No sentido lato, a situação compreende o contexto sócio-histórico, ideológico, mais amplo (...) esses contextos funcionam conjuntamente.” (ORLANDI, 2006:15). Ainda relacionando esse ponto da teoria discursiva com a minha introdução, é preciso marcar que os discursos fazem falar modos de o sujeito ser afetado pela história, inscrevendo um amalgama do tecido lingüístico com o tecido da história, sem que se possa ver a emenda de um no outro. Assim, não são todas palavras que podem circular dentro de um determinado contexto sócio-histórico, mas apenas algumas, o que se repete aqui como efeito de corte.

No caso do doc-vídeo, os sentidos de gilete azul, postos em discurso pelo conjunto de obras de arte de Nazareh Pacheco, pela fala do sujeito-artista e pelo trabalho de construção cinematográfica instalam uma marca importante destas circunstâncias dadas. Primeiro, porque é um momento de desmontagem da exposição que poderia significar aqui uma espécie de corte no tempo do agora e no arranjo do todo exposto, instalando a devolução das obras às caixas onde ficarão guardadas por um tempo e onde não receberão o assédio dos olhos. Em segundo lugar, pela cumplicidade de o sujeito-artista estar dentro do espaço que ele mesmo criou, o que implicou uma seqüência de cortes, desde aqueles talhados nos materiais, na montagem das obras até aqueles que derivaram de um certo arranjo ou intimidade com a disposição deles no espaço físico.

Por último, destaco, como parte dos dados da enunciação constitutivos do discurso do documentário, a escuta refinada do sujeito-diretor (uma psicanalista, cujo trabalho dá-se em cortes de palavras, pontuações de arranjos e arquiteturas de imaginário), ou seja, do olho de quem estava atrás das câmeras, dirigindo os passos da filmagem, possibilitando que o dizer caminhasse por trilhas diversas armadas pelo imprevisível e pela incompletude sem o direcionamento engessado das entrevistas. Estamos, assim, diante de condições de produção que implicam movimentos de sujeitos afetados pela inscrição de que sempre há furo e corte para poder dizer, escutar, analisar e criar.

Como não falamos de pessoas nem de indivíduos, mas de projeções de sujeitos simbólicos, tomados pela ideologia (termo que aqui também permite dizer poder e desejo) e afetados por condições materiais de produção, é preciso considerar que os sentidos sempre são construídos na relação. Na relação com o(s) outro(s), com a exterioridade, com a ideologia e com a memória discursiva, pois uma palavra somente ganha significado se estiver condicionada ao que dela já foi falado antes, ou seja, estamos diante do primado de que algo fala antes. Definido aqui como saber discursivo, como instância do já-lá, como mecanismo sustentador do dizível, “o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’.” (PÊCHEUX, 1997:167).

Existem, então, duas ordens que se combinam no momento em que o sujeito enuncia, quais sejam, a formulação e a constituição, o intradiscurso e o interdiscurso (PÊCHEUX, 1999). O primeiro sustenta-se como a atualização do segundo, ou seja, diz respeito ao modo como são formulados os dizeres, como é retomada a memória e como o sujeito articula o fio de seu discurso com originalidade (não definida aqui como imanência divina ou como inauguração de novidades, mas como marca de origem). Se o primeiro considera o arranjo do sujeito, sua arquitetura na linguagem e suas esculturas, supostamente tão próprias, feitas com “suas” palavras (lembro aqui os dois esquecimentos já anotados anteriormente), é preciso destacar que isso só é possível porque há uma memória a ser reclamada para poder-dizer.

No caso do documentário, esse movimento basculante de atualizar o já-lá, de tecer o risco sobre o tecido da memória, de rebordar o agora da palavra na superfície do já-posto dá-se a conhecer de alguns modos. O sujeito-artista cria formulações sobre sua obra retomando sentidos de sua infância, os seus efeitos de corte no corpo, de cirurgias já feitas, de discursos já ditos sobre o que dela é mostrado. Combinam-se a exposição de radiografias, o nome escrito no prontuário médico, a fotografia do bebê, as datas, os objetos cortantes que são recriados e tornados obras de arte na exposição e, ao mesmo tempo, são sustentados por um interdiscurso sobre o corpo, a cirurgia, o corte e, finalmente, a criação.

O sujeito-diretor debruça-se sobre as formulações do sujeito-artista, tomando o arquivo de suas declarações e inserindo outras marcas nesse já-dado, (por exemplo, citações, músicas) e também instalando a ordem da narrativa especialmente no que diz respeito ao espaço e tempo. A projeção de imagens com certo filtro de cor, a escolha das tomadas e dos enquadramentos do corpo e das obras plásticas, a seleção dos fragmentos orais, o processo de edição, tudo isso faz falar (re)cortes do dizer do sujeito sobre dizeres de outros, campo fundante de atualizações e deslocamentos de sentidos onde duas discursividades imbricam-se em fluências, penetram-se uma na outra, costuram-se de modo a comporem uma terceira voz, cuja textura tem algo de cúmplice e também de cortante.

Efeitos de corte, (n)a esfera da criação

“Pés pra que os quero se tenho asas para voar” - Frida Khalo


O doc-vídeo Gilete Azul tanto registra a exposição, cuja vida é perecível posto que, depois de desfeita, só restará em fotos e gravações, quanto recupera os passos da desmontagem das obras de arte. Recolhidas em caixas e acomodadas em lugares onde não terão mais movimento de leveza no ar, as tiras com miçanga, peças de cristal e pedaços de gilete dão-se a conhecer até mesmo no momento de sua retirada. A filmagem desse momento é bastante significativa, pois traça um percurso de sentidos, qual seja, de exposição a vídeo; mais ainda, faz permanecer à disposição do olhar algo que estava em exposição e que agora se conserva como presença em outra materialidade e, é possível anotar, desenha ainda um trajeto mais denso, isto é, do corte à criação.

Assim, tem-se uma cadeia de deslocamentos imbricados de modo especial: do corte à criação, da criação à obra, da obra à exposição, da exposição à desmontagem e dela ao vídeo. Vale ressaltar que isso reclama a consideração de sujeitos que não contam nem editam suas cenas de maneira cronológica, que não pesam nem recortam suas palavras com a intenção de produzir um sentido apenas, mas sujeitos discursivos interpelados pela ideologia e capturados pelo modo como o desejo os toma e assola. Por isso, a análise de dados não prioriza responder questões como o que a artista quis dizer ou disse, ou o que a diretora quis produzir com essa cena, cor ou música, já que, segundo a teoria discursiva, o sujeito produz sentidos à revelia de suas intenções. Terei, sim, o intento de atravessar as cortinas brilhantes e veladoras da materialidade lingüística (recorrendo ao imagético também) para (tentar) significar como objetos manipuláveis de metal ou borracha, como roupas tecidas com miçangas e cristal, como instrumentos de perfuração, como materiais cirúrgicos, como lâminas de barbear e giletes constroem-se na voz da artista e da diretora, enfim, como são postos em discurso efeitos de corte e criação.

Após assistir ao doc-vídeo inúmeras vezes, selecionei passagens e as transcrevi; o motivo da escolha diz respeito, primeiramente, ao modo como fui afetada pelo verbal e não-verbal, depois, ao modo como jogam, nesse discurso, a presença de um movimento basculante com efeitos de corte e criação estabelecidos a partir de uma relação sublime de antagonismo e contradição.

“Acho que a questão da timidez é uma, um passado, né. Porque quando eu me proponho a trabalhar com o espaço, onde eu construo esse camarim, esse espelho com essas lâmpadas, o desejo, né, eu acho que a beleza, a questão da mulher, ao mesmo tempo, essa cortina de gilete que impossibilita. E é um espaço, né, de, íntimo (...) do desejo, mas, ao mesmo tempo, é um impenetrável. Essa impossibilidade ligada à questão da sedução.”


O sujeito, ao dizer sobre seu trabalho como construção (“eu me proponho a trabalhar com o espaço, onde eu construo”), considera-o lugar de transformações ao modo de um camarim, espaço que, pelo interdiscurso, é necessário (quase obrigatório) para artistas se transmutarem em seus personagens. A presença dos significantes “espelho, lâmpadas, desejo, cortina de gilete” remete a sentidos de imagens refletidas e representações, de algo que se move e que não se vê de perto, mas mediado por objetos. O “espelho” marca um início, vê-se nele algo que está e não está lá, isto é, a coisa ausente e o reflexo presente, ambos passíveis de serem vistos, mas impossíveis de serem tocados a não ser como imagem refletida. Também as “lâmpadas” guardam esse jogo de presença/ausência em relação à luz produzida por elas, luz impossível de alcançar a não ser como reflexo e como efeito. Nas marcas “o desejo, a beleza, a questão da mulher” também comparece uma regularidade reafirmando esse jogo de imagens, no caso, jogo de representações a respeito do que é ser mulher, da beleza de mulher, da sedução do corpo da mulher e também da implicação do desejo de ser uma (dentre outras) imagem(s) de mulher, bonita e sedutora.

É possível indagar aqui: em relação a que outros sentidos são tecidos estes de mulher, de beleza, de desejo, de sedução? Uma resposta possível é posta em discurso pela referência à cortina de gilete. O embaçamento dos fios de miçanga e gilete encobre a imagem de Nazareth Pacheco, vela o seu dizer, instala a gilete na frente da câmera como a marcar (um)a fronteira de corte, impossibilidade de aproximação, isto é, uma ordem de inatingíveis. O modo como a cortina é filmada dilata esse efeito, pois toda a superfície da cena é impossível de ser significada sem os objetos cortantes (e também brilhantes no seu avesso), o que agudiza os sentidos de desejar. A mais desejo e a mais desejar, corresponde mais cortina de giletes erguida, pendurada como estandarte do “impenetrável, a impossibilidade ligada à questão da sedução”. Essa tensa membrana de desejar e não poder se aproximar do desejo retorna em outros momentos e regulariza um corte, ou seja, uma cisão que interrompe o fluxo supostamente contínuo e sem borda dos desejares e, como os cortes significados na introdução deste trabalho, o corte aqui faz falar o deslocamento para o campo da criação.

Nas formulações do sujeito, há espaços de pausas, de substituições, de palavras que se anunciam e que não são ditas, de paradas, vascilos e cortes (o né é marca recorrente) como a indicar que, na ordem da própria língua, o corte se manifesta para, depois, se deslocar para os materiais, obra de arte, composição das cenas da exposição, desmonte das obras e vídeo. Enfim, a língua é cortada, picotada pelas travas da fala e os significantes (e não signos lingüísticos) materializam-se navalhados e giletados, mostrando interrupções como nas formulações que se seguem “questão da timidez é uma, um passado e o desejo, né, eu acho que a beleza, a questão da mulher” .

“Eu sempre usei o meu próprio corpo como referência de tamanho, né. O próprio vestido, quando eu comecei, quando eu começo, né, a construir, é sempre pela parte de cima e sempre tem que ter justamente, né, a largura do meu corpo. E eu vou trabalhando justamente utilizando o meu próprio corpo como molde dessa referência (...)Se por um lado os vestidos são extremamente sedutores, se por um lado eles seduzem num primeiro olhar, um primeiro instante, e muitas pessoas sentem, né, o desejo de poderem utilizar; num segundo olhar, já vai demonstrar a impossibilidade em relação aos objetos, aos elementos que são utilizados na construção desse trabalho.”


Tanto no primeiro recorte quanto nesse segundo, o sujeito enuncia o “trabalho” de criação como “construção”, como algo que é elaborado, às vezes medido pelo/no corpo e tomado como referência a partir dele. Para uma construção ser feita, são necessários ajustes, combinação de diferentes, acomodação, isto é, cortes e recortes de materiais, o que marca um processo de combinação, neste caso, uma continuação do corpo criador na obra criada. Esse processo de usar “próprio corpo como referência de tamanho” cria um efeito de identificação aparentemente sem cortes, pois enreda um estar “trabalhando justamente utilizando o meu próprio corpo como molde dessa referência”. A implicação disso é que a largura do corpo e da obra se ajustam em um fluxo de intimidade, extensão continuada e empréstimo.

Mas isso não exclui o corte logo no momento seguinte, quando o sujeito enuncia a impossibilidade de usar um vestido moldado pelo próprio corpo humano. No universo da costura, tirar o molde, usar as medidas do corpo para fazer um molde e modelar um risco tendem a cristalizar sentidos de ajustamento de tecidos – o tecido da fazenda ao tecido da carne. Entretanto, nesse caso, o sujeito marca que, mesmo usando-se como molde, o vestido é impossível de ser usado, tocado, colado à pele. Seduz, mas o chegar-perto garante a privação de tocar. Essa relação de contradição dá-se justamente pelo/no movimento de desejar tocar e ser impossível o toque; recupera-se aqui o sentido já colocado em discurso anteriormente, de que há uma superfície de impenetráveis, de inatingíveis e de não-alcançáveis à qual o sujeito está permanentemente preso e alienado.

Os vestidos filmados de longe e, depois, de perto inscrevem na materialidade imagética esse movimento basculante de vislumbre, sedução e desejo de uso, que vai se desfazer aos poucos na medida em que as peças são focadas e desnudadas pelo olhar da câmera filmadora, ou seja, tudo muda à medida em que as obras são vistas e significadas pelo cortante que implicam, pelo imaginário do que poderiam causar no corpo, pela medida de dor que prometem encarnar. Se antes elas saíram de um corpo tomado como objeto e medida de realidade, agora já não podem retornar a ele, ficando na esfera de um sem-corpo e da ausência de algo que já foi e que não pode mais ser o que era.

“Esse balanço, né, que convida ao prazer, remete muito à questão da infância. Eu acho que ele vem muito ligado com a questão da impossibilidade desse prazer.”


O mesmo jogo de sentidos condensa-se na formulação acima, inscrevendo o prazer perdido para sempre. Pelo acesso ao interdiscurso, o balanço infantil sustenta-se como um brinquedo muito conhecido pelas crianças, já que o ato de ser arremessado no ar, preso colado apenas a uma cadeirinha com cordas, coloca o corpo em suspenso, livre no ar e deslocante em relação aos efeitos de fixação dados pelos pés na terra; isso é retomado pelo sujeito que enuncia ser o balanço algo que “convida ao prazer, remete muito à questão da infância”.

No entanto, o balanço é visualmente composto por objetos perfurantes e pontiagudos que, fixados na cadeira, impedem o assento e instalam, novamente, o efeito de impossível. Assim, recupera-se a seguinte tessitura discursiva: embora seja muito prazeroso balançar, embora o ir-e-vir da cadeirinha possa construir o efeito de liberdade e leveza, embora infância tenha gosto de balanço, nesse caso, tudo isso é interditado. Observo como essa elaboração não está solta nem é acidental, mas denuncia o modo do sujeito significar(-se), assim, há um fio encadeado construindo um gesto de leitura sobre cortes: a cortina também era linda todavia impenetrável, os vestidos belíssimos e não passíveis de uso e o balanço muito prazeroso, embora distante.

“Eu acabo relacionando, né, com o próprio látex, né, a relação da, do momento em que você tomar, no momento da anestesia geral, né, em que esse garrote te aperta, né. Eu acho que talvez pra mim seja o pior momento de todos os processos que era o momento em que eu ia ser perfurada mesmo, que eu acho que por tudo, né, por todos os processos cirúrgicos. Eu acho que o maior pânico pra mim era esse momento da agulha, né, eu... E esses elementos que a gente dispõe pra poder darem um certo conforto, um certo... Lidar com a questão da dor.


Ao enunciar sobre o látex, material com o qual a artista trabalha, é colocada em movimento uma cadeia associativa, promotora de uma série de deslizamentos entre palavras: “o próprio látex, o momento da anestesia geral, esse garrote te aperta”. Há cortes na forma como o sujeito constrói essa rede de conexões sem a preocupação de costurar sentidos coesos, mas lançando pedaços de enunciados que funcionam como cacos, pedaços e fragmentos soltos; inclui-se nesse gesto de deriva um tu que pode ser efeito do próprio eu. As marcas seguintes sublinham a própria exposição do sujeito – “talvez pra mim, eu ia ser perfurada mesmo, eu acho que por tudo, o maior pânico pra mim, eu” - contrapondo-se a outras formas de pessoalizar o discurso, quais sejam, “te, você, a gente” . Esse jogo entre o que está fora e dentro, o outro e o eu, o externo ao corpo e o corte no próprio corpo movem-se de maneira bastante significativa para este sujeito que, conforme o próximo enunciado, conviveu desde a mais tenra infância com os sentidos de cirurgia, ou seja, com efeitos de corte. Observo com esta análise o conflituoso trajeto do corte ao alívio, do que inter-fere no corpo para o que anestesia e conforta o corpo, do talho após o golpe do garrote da borracha na veia e do alívio dado por estes mesmos materiais arranjados em/como obras de arte, marcando o quanto tudo isso se desdobra no processo da criação.

A conclusão como um (dentre outros) corte(s)

“Quem quer que haja construído um novo céu, só no seu próprio inferno encontrou energia para fazê-lo.” – Nietszche


Ainda que estejam postas as impossibilidades de toque, de uso e de balanço, o sujeito não cessa de dizer sobre o seu trabalho como “construção” , não cessa de continuar a cortar materiais em uma “luta corporal” pela madrugada afora (enunciado que parece em outro momento do doc-vídeo) compondo obras luminosas, brilhantes e sedutoras, não cessa de marcar a necessidade de “estar com as mãos ocupadas, ta cortando, perfurando, construindo, costurando”. O recorte seguinte marca como os efeitos de corte inscreveram-se com regularidade na constituição desse sujeito, que os desloca de seu corpo para o espaço da criação e da simbolização.

“Eu acho que talvez eu tenha, no meu início de vida, tenham sido cortadas alguns momentos, alguns processos. Eu passei é um mês na no hospital na.. . E só saí depois, só fui ter contato mesmo com as pessoas com um mês e pouco. Com dois meses eu já estava fazendo a cirurgia do lábio leporino e foi importante pra mim ir a fundo nesses... tentar lidar com esses elementos e tentar pensar um pouco o que tinha acontecido…


Esse efeito de retroagir sobre a superfície do próprio dizer é uma das tarefas do analista de discurso: voltar ao já falado e tornado linguagem e fazer disso um observatório para a escuta do sujeito e do sentido, considerando sempre a possibilidade de o sentido e o dizer serem outros, deslizarem, romperem com a previsibilidade e fissurarem o já dado pela via de substituições ou de condensações.

Assim, o sujeito emerge em furos intervalares de seus próprios cortes, em sulcos profundos e em rupturas de seus sentidos, em lugares outros onde se possa cavar espaços de significação do corte à criação. “Pensar um pouco o que tinha acontecido” me parece ser o único possível para os três pós-cortes descritos no início desse trabalho: o depois da cirurgia, a cicatriz fechada e denunciante, o fim de uma sessão de análise. Todos eles podem funcionar como corte (dolorido e angustiante), mas, por isso mesmo, passível de recorte nas redes de filiações de sentidos do sujeito permitindo falar, tanto quanto possível, de si e do seu desejo, ainda que construindo cortinas, vestidos e balanços lindos de ver e impossíveis de tocar.

Lucília Maria Sousa Romão

Referências bibliográficas

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e textualidade. Campinas, São Paulo: Pontes, 2006.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2005. 6ª ed.
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PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et. al.. Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1969.

Profa. Dra. da Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e da Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Colaboradora da Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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