Tadeu Chiarelli entrevista Nazareth Pacheco - Facículos de arte comtemporânea
01/03/2001
1 – Seus primeiros trabalhos, de caráter marcadamente autobiográfico, evidenciavam a história de reconstrução de seu corpo a partir dos parâmetros mais aceitos da beleza feminina ocidental. Em poucas palavras você poderia relatar esse processo?
R – Eu dividiria esse processo em duas partes: nas cirurgias de reparação de um problema congênito, em que me submeti à correção do lábio leporino, transplante de córnea, cirurgia nas mãos, pés, nariz e boca. Já a segunda parte, seria o registro de tratamentos chamados “de beleza”: tratamento da pelo do rosto, aparelho dos dentes, depilação, limpeza de pele, entre outros. Essas duas partes do processo se deram, na verdade, desde quando eu nasci. A partir dos anos 80, deixei de fazer as cirurgias corretivas e o enfoque passou a ser dirigido apenas à questão estética.
2 – A necessidade de adaptação do corpo a um modelo ideal (e irreal) de beleza inscreve-se no quadro autoritário da sociedade que impõe à mulher a necessidade de construção de uma persona, uma máscara adequada a padrões quase sempre inatingíveis. Como você transformou essa questão em arte? Ou melhor, em que medida sua experiência de vida foi “traduzida” para o campo da arte?
R - Por meio de questões ligadas à identidade e à memória. Chegou um momento em minha vida em que a questão do modelo ideal de beleza passou a ter um peso grande e foi por meio desta questão que, trabalhando com esses dados, a minha experiência de vida foi “transformada” em arte, mas com uma grande preocupação formal e estética ao realizar os chamados “objetos de arte”.
3 – Essa relação conflituosa entre aquilo que você “deveria aparentar” (dentro dos padrões estéticos estandardizados) e sua aparência real levou-a à produção de objetos de adorno, em que a sedução do brilho dos materiais escondia o perigo real da mutilação, do ferimento em quem ousasse vesti-los ou mesmo manipula-los. Fale um pouco da perversidade implícita nessa fase de sua produção.
R – Não posso negar a perversidade presente nos colares e vestidos, mas acima de tudo os materiais cortantes e de perfuração escolhidos para confecção desses objetos estavam diretamente ligados a objetos que sempre me causaram medo e pânico: agulhas, lâminas etc., as quais sempre eram utilizadas nas cirurgias às quais me submeti. Mas, por outro lado, utilizo cristais, pérolas, materiais esses extremamente sedutores, que se tornaram desejados através de suas formas e brilhos. Ao desejar alcançar o belo, tenho que me submeter a cortes e perfurações.
4 – Em uma recente viagem a Nova Iorque você conheceu a importante artista franco-americana Louise Bourgeois e com ela se envolveu num projeto de aprofundamento de questões artísticas e estéticas muito importantes para o desenvolvimento posterior do seu trabalho. Você poderia relatar com brevidade essa experiência e os resultados já passíveis de serem vistos em sua obra?
R - Louise Bourgeois, que completa 90 anos em dezembro deste ano, costuma se encontrar com outros artistas, sempre aos domingos, em sua casa, em Nova Iorque. Participei de três desses encontros em 1999 e 2000 e o que me chamou mais a atenção, em primeiro lugar, foi o interesse de Bourgeois pelo trabalho de seus convidados e não propriamente pela divulgação de sua própria obra.
No ano passado, quando voltei a Nova Iorque, telefonei para Louise que me solicitou que levasse alguns trabalhos no domingo seguinte. Eu não havia levado nenhum trabalho para Nova Iorque, apenas fotos de obras já realizadas. Louise não se deu por vencida e pediu que eu produzisse novas obras para serem apresentadas ao grupo dois dias depois (o telefonema ocorreu numa sexta-feira).
Depois de sugerir que eu comprasse um tipo de massa plástica utilizada para modelagem, interrogou-me a respeito do que eu pretendia fazer. Senti-me pega totalmente desprevenida e ela sugeriu, então, que eu fechasse os olhos e imaginasse o objeto que eu deveria fazer. Respondi que, com certeza, faria um objeto relacionado ao corpo e que teria de dez a vinte centímetros. “Como você é tímida”, me respondeu Louise.
No domingo apresentei os protótipos para Louise e o resto do grupo e ela se mostrou muito satisfeita até insistindo que passasse os objetos para o gesso. De volta a São Paulo, resolvi que não apenas passaria os objetos para o gesso mas também os ampliaria.
Esses objetos estão muito relacionados à fecundação do óvulo pelo espermatozóide e, num segundo momento, eu consigo sugerir naquela forma totalmente orgânica alguma interferência capaz de provocar alguma mutação no desenvolvimento daquele suposto “embrião”.
Em função desses trabalhos, passei a me aprofundar no projeto genoma e gostaria de explorar essas questões formalmente.