Textos

Maria Alice Milliet - O corpo como destino
01/08/1993

“O outro é o que me permite de não me repetir ao infinito”
Baudrillard


Há sintomas de rompimento do acordo tácito de não agressão que vem anestesiando as relações entre a arte e o público. A revelação de conteúdos potencialmente perturbadores começa a aparecer em mostras isoladas no Brasil e com maior insistência no exterior. Ante um poder difuso e uma apatia generalizada, as manifestações individuais surgem como potencialmente ativadoras da sensibilidade coletiva quando impregnadas de força crítica e reflexiva. A arte deixa de ser um tranquilizante ou um euforizante para dar a dimensão do real. Nazareth Pacheco propõe algo inquietante. Vista retrospectivamente a poética que vem desenvolvendo há cinco anos, assume hoje, um significado explícito. O que se anunciava em suas obras feitas com borracha e metal, seguidas por instalações — entendido por alguns como de extração pós-minimalista — evidencia-se nesta apresentação austera como reflexão sobre a identidade fundada na história do corpo. O corpo humano — “lugar fantasmático por excelência” (Barthes) — é continente, laboratório e expressão: marcado por sucessivos acontecimentos fisiológicos e psíquicos encerra a complexidade de um percurso voltado para a superação de amarras existenciais em busca do prazer. Objetual ou documental, a obra de Nazareth resulta de experiências vividas na intimidade corporal; daí retirando a intensidade capaz de tocar o espectador. É, portanto, um trabalho do desejo.

Dispondo duas séries de caixas contendo objetos e documentos diversos, fixadas ao muro, a artista cria um corpo histórico. A anamnese se manifesta pelo recolhimento de fragmentos e resíduos de sua história pessoal articulados segundo uma sintaxe própria. O processo que podemos chamar de “bricolage” organiza um discurso que “fala por meio das coisas” (L. Strauss) produzindo a reativação dos signos — receitas, bulas, diagnósticos, fotografias, medicamentos, seringa, máscara, mecha de cabelos, etc. — não para reproduzir situações mas para re-velá-las. A primeira sequência de caixas refere-se a tratamentos médicos visando a recuperação física e a segunda, aos chamados tratamentos de beleza. Entretanto, na narrativa a distinção se dilui insinuando-se a analogia entre os procedimentos terapêuticos e esteticistas no que tange à submissão do corpo à intervenções justificadas pelo alcance dos resultados funcional e estético. O subtexto alude à sexualidade feminina enquanto sujeita à fisiologia e aos padrões culturais de comportamento e ao erotismo que impregna a associação de prazer e dor e o fetichismo.

No centro do espaço expositivo, um conjunto de blocos de látex forma um grande paralelepípedo e impõe-se pelo rigor formal. Metáfora do corpo. O látex puro é extremamente sensual. Sua consistência é de uma rigidez relativa sendo perfurado ou cortado com facilidade, a superfície é texturada e tépida, a cor nuançada em tons castanhos, desprende um odor característico, é deformável e reduz-se com o tempo. Pode ser industrializado e reciclado. Solene, repousa a matéria na fatalidade da transformação. Com esta redução, Nazareth rompe com qualquer subjetividade. Escapa a si mesma.

A encenação instalada abaixo do solo refaz o ciclo temporal, fio condutor de toda metamorfose.

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