Tadeu Chiarelli - Uma realidade... dilacerante: a produção de Nazareth Pacheco
01/03/1997
“O terrível da sublevação do objeto tem sua raiz em seu silêncio e em sua imobilidade”
Juan-Eduardo Cirlot
No início desta década, ao escrever sobre os primeiras peças decididamente tridimensionais que Nazareth Pacheco apresentava ao público, qualifiquei-as de “objetos dependentes”(1). Herdeiros das tradições povera e pós-minimalista, aqueles objetos filiformes, produzidos em metal ou borracha, pareciam colocar-se no mundo completamente à mercê dos estímulos que os cercavam. O espectador poderia manipulá-los, dando-lhes novas configurações no espaço, ou simplesmente observá-los na inércia que os dominava, parecendo não existir em si mesmos, constituindo-se como contrapontos à auto-suficiência do objeto de arte convencional.
No entanto, eles possuíam outras particularidades que na época não me mobilizaram com tanta intensidade.
Quando feitos em borracha, a artista colocava alguns pinos pontiagudos do mesmo material (elementos que quebravam o caráter liso da tira), conferindo à peça - vejo hoje com clareza - uma estranha semelhança com objetos de tortura.
O mesmo ocorria com os filetes de latão, que Pacheco situava na parede, à altura dos olhos do espectador - filetes esses em que, de tantos em tantos centímetros, a artista também colocava pinos pontiagudos de borracha...
Entre esses primeiros objetos e a exposição que realizaria em 1993 no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, Nazareth Pacheco produziu uma série de objetos em látex, em que o caráter linear visto na produção anterior ainda era mantido. Eram tiras imensas de látex rugoso, só interrompidas por nós decididos, que dobravam e retorciam violentamente a matéria, para depois seguir de novo até outro nó. . .
Eram ainda “dependentes”, sem dúvida, e muito próximos dos filetes de borracha e metal anteriores. Porém, essa nova produção como que parecia ter absorvido a agressividade existente nos trabalhos anteriores (via os pinos de borracha agregados), manifestando-a agora, no entanto, de maneira mais “orgânica”, não só pela própria materialidade agressiva do látex bruto, mas igualmente pelos nós que acabavam por estruturar de maneira precária aquelas peças filiformes.
Como foi mencionado, em 1993, Nazareth Pacheco apresentou novas obras no Gabinete Raquel Arnaud. A maioria dos trabalhos ali mostrados parecia diferir muito dos objetos anteriores, tanto do ponto de vista formal quanto conceitual.
A artista exibia pequenas caixas, repletas dos objetos mais variados, que narravam sua trajetória, ou a trajetória da reconstrução ideal de seu corpo, desde a infância até a idade adulta.
Uma produção de forte cunho catártico, quase terapêutico? Sem dúvida, a mostra possuía muito dessas características. Mas, por outro lado, sinalizava para uma viagem que a artista fazia dentro de si mesma e de sua biografia, à procura de uma verdade possível, capaz de fazê-la transcender seu próprio drama individual e encontrar, no espaço da criação, o significado para continuar existindo enquanto indivíduo, mulher e artista.
Ali, a artista mostrava os vários procedimentos e objetos que foram utilizados para a adequação de seu corpo aos padrões de beleza feminina hegemônicos, como documentos de tortura a que ela própria fora submetida durante anos.
Sintomaticamente, após aquela exposição especialíssima, Nazareth começa a trabalhar com instrumentos médicos e cirúrgicos, conhecidos sobretudo para a manipulação do corpo da mulher: espéculos, saca-mioma...
Na mostra “Espelhos e sombras”, apresentada nos MAM de São Paulo e no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, respectivamente em 1994 e 1995, a artista exibiu uma série de espéculos de acrílico, colocados lado a lado. No meio deles, um mesmo instrumento, só que produzido em metal.
Usando com ironia e espírito subversivo uma receita formal de origem minimalista - um módulo atrás do outro, metaforizando a produção industrial de massa, Nazareth contrapunha à aparente leveza e quase imaterialidade (visual e conceitual) dos espéculos em acrílico a brutalidade ascética do mesmo instrumento em metal. Assim procedendo, parecia perguntar: é possível observar tais aparelhos apenas na beleza fria do design anatômico, sem esquecer a função a que estão destinados, tão próxima de outros instrumentos de tortura?
É nessa fase que o encaminhamento da produção da artista se esclarece.
Primeiro, aqueles “exercícios” do início da década, em que Pacheco é quase ainda uma aluna (talentosa, sem dúvida) da “tradição” pós-minimalista, fortíssima em São Paulo. Uma aluna aplicada, mas que sentia um certo prazer em subverter o receituário da “escola”, introduzindo em suas tiras uma perversidade estranha e inquietante, que só explicitará sua origem mais remota na individual de 1993.
A exposição desse ano, apesar de “catártica”, serviu para que a artista conseguisse ampliar a perspectiva de seu drama pessoal. A partir dali, ela parece ter concluído finalmente não mais ser possível entender-se apenas como um indivíduo isolado, a sentir sozinho os efeitos da ditadura dos padrões de gosto acerca do corpo da mulher, mas como um entre milhões e milhões de seres submetidos a inúmeros procedimentos e/ou objetos torturantes, usados com o fim de se adequarem a exigências exteriores.
Por isso, a artista saiu da documentação autobiográfica para a produção de objetos ou instalações, criados a partir de objetos médicos e/ou cirúrgicos, concebidos para o “aprimoramento” do corpo feminino em geral, a despeito de suas características violentadoras, invasivas, prepotentes, fundamentalmente autoritárias.
Agora, nessa mostra na Galeria Valu Oria, Nazareth Pacheco apresenta esses objetos... sádicos. Colares feitos de cristal e instrumentos de perfuração: anzóis e os mais diversos tipos de agulhas.
Os adornos em geral - e, nesse universo, o colar - fazem parte do nosso cotidiano. Sedutores, concebidos para compensar nossa condição tão imperfeita, tão efêmera, tão humana, eles tendem sempre à perfeição, ao eterno. Usá-los nos torna melhores, como se, pelo contato, eles nos passassem todas as suas qualidades.
Os colares de Nazareth Pacheco nos seduzem: cristalinos e brilhantes, sugerem o toque, a posse, o desejo inconfessável de - como ocorre frente a qualquer adorno - trazê-los para junto do corpo para que nos tornemos um pouco o que eles são. Ou o que deveriam ser, mas não são...
Tocá-los, possuí-los, tomá-los na mão e trazê-los para junto do corpo, esses são os desejos que nos animam...
São dependentes como seus primeiros trabalhos, filiformes como eles, porém agora tão familiares e sedutores e, ao mesmo tempo, tão perversos nesse dado novo que acrescentam: a capacidade real de ferir.
Os “colares” de Nazareth Pacheco se alojam em um estojo muito pequeno, porém extremamente instigante, da arte deste século. Ao lado daquele do ready made de Duchamp, ele surge como o compartimento que a história da arte criou para os “objetos construídos”. Exatamente aqueles objetos que, embora estruturalmente preservem a aparência de inócuos objetos cotidianos, agregam novos elementos que subvertem suas funções originais, ou as negam. Ou as impossibilitam.
O “Presente” de Man Ray, concebido em 1921, talvez seja o mais emblemático dos “objetos construídos”: um prosaico ferro de passar roupa, em cuja base o artista aplicou 14 pinos de metal. Sádico, tanto em sua configuração final quanto no próprio título, o “Presente” extrapola os limites do real, por meio de uma perversidade fria, calculada.
Mas ele não é a única peça emblemática desse estojo. Existe igualmente o “Objeto” de Merret Oppenheim: um pires e uma xícara recobertos de pelo. Dependentes igualmente, uma vez que foram concebidos originalmente para serem manipulados (tanto quanto o “ferro” de Man Ray), revestidos de peles eles adquirem uma estranha imobilidade - uma inquietante imobilidade. Ali, silenciosos, parecem ter ganho, de repente, uma auto-suficiência brusca advinda das ameaças que passam a representar: ameaça física (podem comprometer a integridade de outros objetos ou do próprio corpo do eventual usuário) e ameaça psíquica (destroem nossas certezas sobre a “realidade” cotidiana).
Os colares de Nazareth Pacheco causam essas mesmas sensações: adornos, objetos dependentes da nossa vontade, pela introdução de elementos cortantes entremeados às pedras, adquirem uma auto-suficiência derivada justamente da operação realizada pela artista, no próprio conceito do objeto “colar”: concebidos para adornar, para compensar os limites da nossa existência, eles agora representam uma ameaça a ela.
Observando a produção do início da carreira da artista, tendo como ponto de partida essa sua produção atual, percebe-se claramente que, desde o início, Nazareth vem fazendo o mesmo trabalho: objetos filiformes, dependentes do espectador. Só que agora mais belos. E a ameaça que representavam em potencial no início dos anos 90 agora é uma realidade... dilacerante.
1 - O texto “Objetos dependentes” foi publicado duas vezes: no “folder” produzido para a individual da artista no Centro Cultural São Paulo,1990, e no “folder” produzido para a individual na Galeria Macunaíma, IBAC, RJ, 1991.