Moacir dos Anjos - O Corpo em Construção
01/09/1999
Ao longo de já vários anos, Nazareth Pacheco faz de seu trabalho o Registro físico de sua condição de vida: uma mulher que traz no corpo as marcas de uma má-formação congênita, uma mulher que traz no corpo as marcas das muitas cirurgias reparadoras a que se submeteu e se submete, uma mulher que traz no corpo as marcas do que a individualiza e que a torna por isso igual a tantas.
Separados do toque humano por convenções museológicas, os objetos cobertos de pontas de borracha que construía no início dos anos 90 apenas sussurravam a dor que um corpo estranho a si mesmo sente. Num quase grito, mudou adiante o rumo do trajeto criativo, expondo, em pequenas caixas, fotografias, documentos e outros rastros da reinvenção cirúrgica de sua carne e pele, do nascimento à idade adulta. Estabelecidos os limites extremos dentro dos quais transforma em coisas o que lhe é incômodo, matizou finalmente seu discurso expressivo, tornando-o mais ambíguo e contudo mais eloqüente. É neste ponto do percurso que se encontram as peças que vem fazendo nos anos recentes.
São colares, miçangas, gargantilhas e outros ornatos feitos do entrelace entre contas de cristal e instrumentos diversos – lâminas, anzóis, giletes e agulhas – que cortam, furam e rasgam a epiderme humana. Visualmente atraentes em brilho e forma, são incapazes de adornar algum corpo sem abrir feridas, tornando-se por isso depositários de lembranças de dores sentidas em outros momentos. Atando o que se aparenta oposto, esses objetos estranhos se transformam em elo simbólico entre o prazer de acomodar-se a parâmetros convencionados como de normalidade física e a dor que se origina de qualquer violação do corpo como nascido.
Tecem, em tom baixo, um discurso crítico sobre o desejo que o corpo certo do outro sempre desata e sobre a quase impossibilidade de não se deixar avizinhar por uma norma de belo a despeito dos sacrifícios que esta proximidade engendre.
Guardados pela razão descrente e quase cínica que suas formas incorporam, estes adornos são como objetos votivos postos ao avesso de seu intento: construídos não como agradecimentos pelo alcance de graças pedidas, mas como reconhecimento dos limites do que é possível alcançar no âmbito dos procedimentos humanos. Expostas em relicários de acrílico, as obras de Nazareth Pacheco são testemunhas caladas e imóveis do caminho imenso, doído e frágil da construção de um corpo que a ele próprio não se contenta. E é a partir desta singularidade absoluta que seu trabalho toca a dor do outro, se alarga e encontra lugar no mundo.