Textos

Margarida Sant`Anna - Elogio do feminino
01/01/2014

Que a feminilidade seja autêntica ou superficial,
é fundamentalmente a mesma coisa.

Joan Rivière(1)

O nome de Nazareth Pacheco está ligado a uma geração de artistas surgida no final dos anos 80 e início dos 90, que conjuga aspectos da tradição minimalista com elementos simbólicos, alguns remetendo a fatos autobiográficos.

Paulista, licenciou-se em artes plásticas pela Universidade Mackenzie, complementando sua formação acadêmica em diversos ateliês livres e wokshops. Realizou sua primeira individual de maior relevância em 1988, momento em que começa a trabalhar esculturas filiformes, associando às longas fitas de borracha ou latão formas pontiagudas, que remetiam incontestavelmente a instrumentos de dor.

Em 1993, apresentou no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, vitrines-arquivos de objetos autobiográficos. Numa exposição ao mesmo tempo catártica e libertária, a artista investigava tratamentos médicos e estéticos aos quais foi submetida desde o nascimento, sem fazer da obra, entretanto , uma ilustração da própria vida.

Na seminal coletiva “Espelhos e sombras”, com curadoria de Aracy Amaral, Nazareth apresentava o corpo por meio de instrumentos da medicina destinados à mulher. Os exercícios de embelezamento, mesclados a técnicas de tortura, foram tema dos trabalhos desse período e mais tarde seriam objeto de estudo em seu mestrado, apresentado na Escola de Comunicações e Artes da USP em 2002. Além das experimentações anteriores, a artista incorporava agora uma iconografia inédita para a construção dos novos objetos: instrumentos de suplício e aprisionamento vistos no Museu do Crime (Rothenburg, Alemanha) e gravuras de Debret, em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil.

Convidada por Tadeu Chiarelli a integrar o Panorama da Arte Brasileira de 1997, no qual foi premiada, a artista apresentou a produção de colares e vestidos. Concebidos para adornar, a fim de compensar os limites da nossa frágil existência, tornavam-se cada vez mais ameaçadores. O crítico salientava, em texto da mesma época(2), que o risco potencial dos objetos do início dos anos 90 era agora uma realidade. Uma realidade cada vez mais aterradora.

Em 1998, na XXIV Bienal Internacional de São Paulo, a artista apresentou uma coleção de colares, todos protegidos em caixas de acrílico como objetos de desejo. No catálogo individual, Lisette Lagnado salientava que “reunidos na sintaxe do colecionismo, os adornos acabam formando um sistema, graças a um trabalho de perlaboração que os permitiram passar do registro privado à dimensão pública. Além disso, porém, a dor foi o depósito compulsório para um ajuste com a volta mítica às origens”.

Em 1999, a partir de textos de Louise Bourgeois, que a artista conhece naquele verão, surge um berço com “mosqueteiro”, exposto na mostra “Transcendência”. O tema da cortina/transparência irrompe nesse momento, reaparecendo aqui, mais denso.

O recente trabalho apresentado na Mercedes Viegas Arte Contemporânea resgata questões dos trabalhos anteriores. Entretanto, um dado novo surge em sua recente pesquisa, exibida aqui pela primeira vez: a elaboração de espaços reservados à privacidade. Construídos por meio de uma parede/cortina, a passagem do olho é possível, mas não a penetração, sob risco de ferimentos, já que construída com lâminas de barbear. Nesse espaço, superficialidade e profundidade se confundem visto que não podem ser vividas, experimentadas pelo espectador. Nessa ambigüidade, tornam-se alegorias do feminino.

No livro De la séduction(3), Baudrillard argumenta que não é exatamente o feminino como superfície que se opõe ao masculino como profundidade, mas “o feminino como indistinção da superfície e da profundidade. Ou como indiferença entre o autêntico e o artificial.”

Valorizando a “pele” desses impenetráveis, sem nos dar o direito de experimentação do interior da redoma, a artista parece responder de forma irônica aos abrigos de Hélio Oiticica, de Lygia Clark. Enquanto ali eram protetores, aqui nos jogam de volta para o espaço público (logo, político), obrigando-nos a rever nosso papel no mundo.

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