Textos

Elisabeth Leone - Entre o tato e a visão
01/01/2014

A vida real e o universo cultural são linhas tecidas que se entrecruzam e, para ambas vale dizer que, se não soubermos olhar para trás, de onde viemos, não saberemos quem somos e para onde vamos. Nazareth Pacheco, nesta mostra, reúne algumas obras de cada momento de seu percurso como artista plástica, comemora quinze anos de trabalho. Para nós, é um privilégio ver em conjunto sua obra que, apesar de ser construída por tão jovem artista, apresenta coerência e amadurecimento. Mas não é só isso. Ao observar tal caminho, não pude deixar de ver mãos, pele, revestimentos, um corpo. O corpo é um todo de sentidos, direções. A obra de Nazareth provoca movimentos que se alternam na dança das ordens sensoriais, proximidade (tato) e distância (visão), possibilidade e impossibilidade. Talvez escutemos: “toca e não me olhes, olha e não te aproximes, não me toques”! Assim sendo, pensei ser provável que alguns de seus trabalhos sejam sentidos via comunicação tátil, para aqueles que não tem o sentido da visão ou o tem diminuído.

Desde o início de sua carreira, em 1988, Nazareth desliga-se do plano bidimensional. Constrói objetos tridimensionais, expandindo seus trabalhos para o espaço, fazendo com que eles ocupem o mesmo lugar do meu, do teu, do nosso corpo. Mas que espaço ocupa este corpo contemporâneo? Como bem diz Flusser, “espaço, aqui estão as minhas dores”. Suas primeiras peças tridimensionais foram qualificadas por Tadeu Chiarelli de Objetos Dependentes. Quando feitos em borracha, a artista colocava pinos pontiagudos do mesmo material. “Pinos e mais pinos para cortar, furar e aparafusar. Descubro o prazer do fazer. A mão precisa estar ocupada, acabou um, começa outro”(1). Surgem volumes autônomos, formas filiformes, tiras. Das mãos da artista para as mãos do espectador. Maleáveis, aguardam o contato, disponíveis para ocuparem o espaço de outras maneiras.

Ainda no final da década de 90, agrega à borracha metais, como filetes de aço, cobre e latão. Fixadas na parede, horizontalmente, na altura dos olhos, as obras perdem o caráter de serem manipuladas. As formas pontiagudas, presentes nos objetos de borracha, migram para as tiras metálicas, porém o tato deve distanciar-se.

Da borracha vulcanizada para a borracha natural, Nazareth passa a confeccionar uma série de objetos em látex. Esta matéria sofre transformações, as quais a própria artista quis acompanhar. O látex chega líquido ou coagulado, passa por uma prensa que o transforma em mantas rugosas, secas em estufas especiais. Em 1991, Nazareth começa a enrolar as mantas sobre mantas, camadas e camadas. “assim que as encontra, as estrangula com bridas de chumbo. Briga material, briga corporal. Ora só látex, ora látex e chumbo. Sem a visão, pode-se tocar. O látex é material rugoso, áspero, contudo porta impressões, como nossa pele. Já o chumbo é denso, intransponível. Parece leve, mas trata-se do metal mais pesado utilizado pelo homem.

Nazareth nunca dá títulos às obras. Às vezes, críticos ou a própria artista nomeiam uma fase de seus trabalhos. Esta chama-se Peles. Não é à toa a expressão “sentir na pele”. É na pele que sentimos a dor e o prazer. Os órgãos dos sentidos são recobertos de pele. Nela inscreve-se nossa história e através dela percebemos a história do outro. Ainda em 1991, Nazareth apresentou uma instalação na Pinacoteca com espécies de grandes travesseiros, revestidos de veludo, um dos quais aqui presente. O veludo é macio, agradável ao tato, pele igualmente.

Os Objetos Aprisionados são obras de 92/93. Seu trabalho é exposto em uma série de caixas que contem objetos como fotos, radiografias, arcada dentária, documentos, frascos e chumbo. Caixas guardam segredos. Tanto segredos como caixas fechadas são intocáveis. Contam a história de um corpo inúmeras vezes tocado, corpo que sentiu na pele tratamentos estéticos e cirúrgicos.

Já em 1994/95, sua reflexão amplia-se de um corpo para o universo do corpo feminino. A artista começa a trabalhar com instrumentos médicos e cirúrgicos ligados à condição da mulher. Espéculos, dius, saca- miomas são os materiais que trabalha para apresentar sua visão de mundo. O interior do corpo da mulher como destino. Produção em massa como metáfora.

Em 1996, do interior do corpo, para o exterior novamente. Sua produção apresenta objetos que nos remetem à superfície da pele. Esta adapta-se sempre, flexível, como umbigos de mulheres grávidas, movimentos da pele. Nos objetos de chumbo e borracha, mensagens da pele. Neste nosso maior órgão, nada é superficial. O que está na profundidade aflora para a pele e vice-versa.

Em 1997, suas mãos voltam a tecer, mas objetos que não podem ser tocados. Apenas ela os toca. Sem proteção, ela tece com cristais, agulhas, lâminas de bisturi, de lancetar, de barbear, anzóis, são os Colares. Corta, fura o dedo. Nas mostras em que participa(2) estes objetos são colocados em vitrines, como jóias. O olho à distância flana, seduzido aproxima-se, vai de encontro a uma beleza perigosa, “sedução perversa”(3). O mesmo ocorre com as vestes construídas com cristais e lâminas de barbear. O tato fica cego. Os sentidos isolam-se. Adornos e vestes, a impossibilidade de tocarem a pele. A pele é limítrofe, separa e protege o interior do exterior.

É importante observarmos que Nazareth nunca desiste de pesquisar novos materiais. A partir de 1998, começa a trabalhar com o acrílico cristal. Como as miçangas ou os cristais de vidro, o acrílico também seduz o olhar e atrai o tato, tem pele macia. De novo o embate, as duas faces da mesma moeda, os contrastes. O acrílico é material duro, mas trinca facilmente. As mãos da artista não participam inteiramente na confecção de tais obras. Ela prepara os projetos de forma minuciosa, as peças são produzidas numa indústria especializada. Quando voltam para seu atelier, ela os finaliza, como é o caso do banco ou do berço, aqui presentes. No banco, ou quem sabe um divã, em acrílico preto, do comprimento e largura iguais ao seu corpo, há 1600 agulhas que, uma a uma, a artista fixou em seu assento. O berço, em acrílico branco, translúcido, recebe um véu elaborado, pacientemente, com lâminas de barbear e miçangas. Instalados no espaço estes objetos instauram no espectador estranheza e fascinação. Véus são peles. Comunicação ou incomunicação?

Tendo conhecido a artista Louise Bourgeois, em Nova York, Nazareth lá participa de suas reuniões e reflete sobre a transcendência. Elabora, em 2001, peças em resina. Sem a visão, o tato pode reaproximar-se. As pontas dos dedos percebem texturas e formas, a via é a tátil, o olho não censura.

Por ocasião da XXV Bienal de São Paulo, em 2002, na mostra Paralela a artista participou com alguns trabalhos. Pinça das lojas cirúrgicas objetos que ajudam no conhecimento científico do corpo. Em suas construções, aqui expostas, apresenta enclausurados um coração e um esqueleto. Partes do corpo, corpo sem pele. Por outro lado, há também objetos que desenham linhas no espaço, como as agulhas de acupuntura e um fio de um marcapasso. Linhas e fios que atravessam os limites da pele, estimulam o ritmo da vida.

Quando Nazareth esteve na Alemanha, em 1992, visitou o Museu do Crime, em Rothenburg. Impressionada, guardou em sua memória aquelas imagens, as quais, nos anos 2001 e 2002, transformaram se em projetos, obras que denomina Objetos de Aprisionamento. Trabalha grandes blocos de acrílico, mas não sozinha. Os desenhos são adaptados com ajuda do CAD(4), projeto assistido por computador. São peças em acrílico e latão cromado, porém suas mãos distanciam-se deste fazer. Para o espectador, que tem o tato como guia, é permitido tocar.

Nazareth retoma, a mão precisa estar ocupada. Neste semestre, participa de três mostras individuais, para as quais elabora instalações inéditas. Para nosso espaço, esta que descrevo. Um pequeno compartimento, paredes laterais lisas e brancas e na parede em frente há um espelho. Ao redor do mesmo, 22 lâmpadas redondas, usadas, em geral, em camarins. Na entrada para o espaço descrito há uma cortina produzida pelas mãos da artista, feita com miçangas que unem 1008 laminas de barbear. Sim, pela descrição, com ou sem o sentido da visão, pode se ter uma oportunidade de formar nossas próprias imagens mentais, treinar nossa capacidade imaginativa.

Que espaço ocupa este corpo contemporâneo? Num processo imperceptível, vagaroso, mas eficiente, o mundo reduziu o espaço do corpo e promoveu o êxodo dos sentidos. Ocupamos o espaço como objetos, imagens. A meu ver, poderia sugerir para esta fase de Nazareth que são Objetos Silenciosos. Mesmo torturado, aprisionado, o corpo contemporâneo não grita, pois não sabe mais ouvir seus gemidos. Concordamos com Michel Serres quando afirma que nosso corpo sabe mais do que fala, falava mais do que sabia. Ele sabe, esquece que sabe. A sensibilidade desta artista não esquece, ela compartilha. Sua obra não lamenta, apenas expõe nossas cicatrizes. Sua obra está sempre em construção, longa vida para ela. Não sei se podemos dizer o mesmo sobre o corpo contemporâneo.

Elisabeth Leone
Membro do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia.

1 - PACHECO, Nazareth. Objetos Sedutores. Dissertação de Mestrado, apresentada ao Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2002, p.10.
2 - Em 1998, participa da XXIV Bienal Internacional de São Paulo, com uma coleção de Colares.
3 - Expressão utilizada pela crítica Angélica de Moraes em artigo publicado no Estado de São Paulo, 1997.
4 - CAD significa computer aided design. É um software específico, torna possível executar toda a criação e dimensionamento de um determinado item ou conjunto de peças por meio de computação gráfica.


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